Saiba como as Ciências Sociais são um importante recurso para entender e combater a crise da pandemia
Recentemente, em algum grupo de Whatsapp, alguém debochou de um comentário meu e perguntou: “O que as Ciências Sociais já fizeram pelo país?”. Claro, a pergunta transparece a total ignorância do interlocutor sobre a importância da Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Psicologia (entre outras humanidades) na construção de uma sociedade saudável.
Apesar da provocação ter sido feita com o objetivo negativo, ela me ajudou a pensar e produzir este texto que tem como mote responder à pergunta: como as Ciências Sociais estão trabalhando para ajudar no combate à pandemia de Covid-19? E, claro, a conclusão também pode ser estendida à luta pela sustentabilidade. Os dois problemas são vistos pelo senso comum como problemas das Ciências Biológicas e correlatas, mas sem as Ciências Sociais será impossível chegar à melhor forma de resolução deles. Desde já deixo claro que não é possível trazer todos os trabalhos e pesquisas existentes, este é um pequeno apanhado do que achei de mais interessante e que tive acesso recentemente das pesquisas brasileiras na área das Ciências Sociais sobre a pandemia de Covid-19. Os trabalhos foram propositalmente escolhidos, também, por representarem grupos de pesquisadores de universidades federais do Norte-Nordeste brasileiro.
Compreender a crise nas mais diferentes parcelas da sociedade
Um dos principais objetivos dos estudos relacionados à pandemia nas Ciências Sociais é compreender como a crise afeta os diferentes grupos inseridos dentro da sociedade brasileira. Não existe uma única saída para o problema, porque nossa sociedade é múltipla e desigual. O último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) afirmou que “A desigualdade na África Subsariana, no Brasil e no Médio Oriente permaneceu extremamente elevada, com uma parcela de rendimentos dos 10 percentis superiores na ordem dos 55–60 por cento”. O que significa dizer que, nesses países, os 10% mais ricos detêm até 55-60% da riqueza nacional. No Brasil, esse percentual ficou em 42% oficialmente. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro no ano de 2018 foi de 0,761 deixando o país na 79ª posição do ranking [1].
Para além da desigualdade social, medida através da concentração de riqueza, a sociedade brasileira também apresenta desigualdades por grupos sociais: gênero, raça, etnias, campo-cidade, entre outras. Cientistas sociais brasileiros com experiência em acompanhar todas essas variáveis vêm produzindo pesquisas sobre como a doença afeta os mais diversos grupos em todas as regiões brasileiras. São trabalhos que nos trazem diferentes olhares sobre o mesmo ponto e que nos fazem pensar para além do óbvio e do senso comum.
O que falam aqueles que vivem epidemias?
Diretamente de Belém, o historiador Antônio Otaviano Vieira da UFPA (Universidade Federal do Pará), escreveu sobre o registro das vozes de quem viveu epidemias na cidade (clique aqui para acessar). Ele comparou a epidemia de hoje com o relatado sobre a epidemia de sarampo entre 1748-1750 na cidade de Belém. Nos registros das falas encontrados, apenas vozes de quem tinha poder: juízes, políticos, religiosos, conselheiros reais. Um grupo muito diferente de quem estava morrendo aos montes: indígenas e negros. O grupo que morria, o fazia em silêncio.
Séculos depois, passamos por outra epidemia e a pergunta é: como essa história será contada? Dessa vez, temos imprensa e mídias sociais que permitem que muitos falem dos seus sentimentos. Contudo, ainda temos uma elite política e econômica que conta uma diferente história. Lembra? Somos muito desiguais.
Hoje, temos a tecnologia como parceira para ajudar a entender os sentimentos da população. Por exemplo, uma pesquisa foi desenvolvida no departamento de Ciência Política da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) para responder a seguinte pergunta: “O que o brasileiro fala sobre as principais figuras políticas no combate à Covid-19?”.
O doutorando Lucas B. Miranda realizou uma análise de sentimentos nas postagens feitas por brasileiros no Twitter no período de 03 de abril a 16 de abril de 2020. Os resultados (leia clicando aqui) mostram como o debate no Twitter transparece a polaridade política que atingiu também o combate à pandemia no Brasil. Provavelmente, daqui a algumas décadas ou séculos, nossos descendentes contarão a história de 2020 e ela será baseada na polaridade política que ultrapassou a retórica e atrapalhou a construção de políticas públicas eficazes de combate a esta nova doença.
Essa afirmação, aparentemente negativa, é possível por causa das recentes pesquisas que informam que o Brasil tem uma alta taxa de transmissão e em breve será o novo epicentro da pandemia, o que pode ser acessado na mídia essa semana após a recente publicação do Imperial College. Contudo, ainda podemos evitar isso, caso o Brasil mude o discurso para ouvir as ciências e os esforços de pesquisa das suas próprias universidades.
Políticas públicas para populações e comunidades rurais, negras, quilombolas e indígenas
Infelizmente, entre as várias notícias sobre mortes e infecções, uma chamou a atenção por reunir várias injustiças: no começo de abril, um jovem Ianomâmi de apenas 15 anos morreu após contrair o novo coronavírus. Entidades de proteção aos indígenas afirmaram que a comunidade onde o jovem vivia entrou em contato com garimpeiros e denunciaram o aumento dos garimpos ilegais na Amazônia que, consequentemente, em época da pandemia ameaçam não apenas a floresta, mas também a vida dos indígenas.
A preocupação com os grupos mais vulneráveis dentro da nossa sociedade em época de pandemia é objeto de estudo do Núcleo de Extensão em Pesquisa com Populações e Comunidades Rurais, Negras, Quilombolas e Indígenas (NuRuNI), do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Ambiente (PPGSA), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Em um artigo (clique aqui para acessar), eles apresentam algumas das medidas sugeridas por eles para conter a evolução da pandemia dentre essas comunidades.
O que eles chamam a atenção, primeiramente, é que os governantes devem, ao elaborarem políticas públicas, levar em conta que estas comunidades são mais vulneráveis por estarem localizadas em áreas de difícil acesso, com pouca ou nenhuma estrutura de atendimento à saúde e aglomerados. Para além disso, esses grupos são vítimas de racismo institucional. As comunidades quilombolas, por exemplo, encontram-se em situação ainda mais difícil, uma vez que, diferentemente da população indígena, não contam com o apoio de um subsistema de atenção à saúde.
A principal recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) para diminuição da curva de contaminação, o isolamento social, é difícil, se não impossível, quando se fala em famílias que moram em favelas ou palafitas.
De acordo com minha própria observação, a falha na propositura de políticas públicas que compreendam as diferenças nestas comunidades contribui para a pouca ou nenhuma adesão das pessoas às recomendações públicas de isolamento. Se o discurso é direcionado para quem tem o privilégio de ter espaço e empregos que permitam o trabalho de casa, os grupos que vivem uma realidade completamente diferente tendem a não aderir. Seja pela total impossibilidade, ou pela falta de confiança nas instituições políticas. Lembrando que estas mesmas instituições têm um longo histórico de políticas racistas e de exclusão voltadas às essas populações.
Últimas palavrinhas
Mais do que uma “revisão de literatura” dos trabalhos que estão sendo desenvolvidos pelo Brasil na área das Ciências Sociais, o texto aqui tem o objetivo de responder uma provocação e jogar luz sobre essa área que produz muito conhecimento que, quando levado à prática, traz resultados positivos.
Seja no combate à pandemia ou na proteção ao meio ambiente (ou qualquer outro problema que envolva a sociedade), as Ciências Sociais são cada vez mais urgentes para contribuir com as melhores práticas políticas no mundo. E, mais, com o avanço das tecnologias e da informação, não há mais possibilidade de aceitar uma política excludente e livre de accountability.
Por fim, gostaria de deixar a minha marca editorial: política é para ser falada, discutida, comentada. Com educação e informação, claro. Sem fake news e agressões. Não há como pensar um mundo sustentável e melhor sem falar de política. Vamos fazer isso?
[1] O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) varia de 0 a 1, quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento.
Fonte: Autossustentável